Tempos dourados
A escritora e ialorixá Cléo Martins lançou o livro O tempo de Xangô é agora e para sempre, em que resgata Memórias da convivência no Ilê Axé Opô Afonjá.
Mãe Stela foi aprender ioruba moderno na Universidade Federal da Bahia e gostava de ensinar algumas palavras para Odara, seu papagaio. Ela adorava feijão de leite e moquecas – era fã do bobó de camarão do restaurante Maria Mata Mouro, no Pelourinho – e apreciava um uisquinho, um bom vinho, só não era muito de cerveja. Amava tomar banho de mar aos fins de semana, em Piatã, Itapuã, Flamengo. Não dispensava um cineminha, um bom show e torcia para o Vitória. Foi campeã de pebolim e craque de vôlei quando era nova.
A advogada e escritora Cléo Martins desfiou essas memórias no livro O tempo de Xangô é agora e para sempre, em que conta histórias do período em que conviveu com Maria Stella de Azevedo Santos, a ialorixá mãe Stella de Oxóssi, e de como recebeu a notícia de sua morte, em 27 de dezembro do ano passado. “Para mim, foi um momento triste. No dia seguinte, no aeroporto de Congonhas, quando estava vindo para Salvador, comecei a pensar nesse livro. Senti como se uma era tivesse terminado ali”, conta. “A partir do momento que ela morreu, ela pula pra dentro da gente. Então, esse livro, para mim, é como uma missão”.
A primeira obra que Cléo escreveu, em 1988, E daí aconteceu o encanto, foi também o primeiro livro de mãe Stella, que ocupou a cadeira 33 da Academia Baiana de Letras. Entre uma publicação e outra, são mais de três décadas. “Comemos juntas vários quilos de sal. Viajamos. Escrevemos. Dividimos sonhos e, entre moinhos imaginários e dragões de verdade, cultivamos a esperança”, registrou no novo livro. “Foram tempos dourados. Fecundos. Mesmos nos altos e baixos de provações e resistência”.
Desde 2005, Cléo estava afastada da ialorixá. Deixou de frequentar diariamente o Ilê Axé Opô Afonjá, no Retiro, mas considera-se parte de lá. Por isso, sentiu-se como se traída por alguém da família quando viu o comunicado divulgado pela Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá de que não “apoiava, pactuava ou participava” do lançamento do livro, que aconteceu no dia 12 de setembro, na Igreja do Rosário dos Pretos. A data marcava os 80 anos de iniciação de mãe Stella. Na nota, o terreiro dizia que estava de luto, que deve ser cumprido por um ano.
Por não ter realizado o evento no Opô Afonjá, Cléo acredita que não maculou o luto. Diz que o evento ocorreu nesta data porque “o universo quis”. “Eu, Cléo, quis também, e aconteceu. Tudo que Deus permite, abençoa, diz. Em 2000, ela já havia lançado um outro livro, Faraimará, o Caçador Traz Alegria, para comemorar os 60 anos de iniciação de mãe Stella.
INTOLERÂNCIA
Filha de Iansã, Cléo passou seis anos morando num mosteiro beneditino em São Paulo depois de deixar Salvador. Para ela, a busca por Deus é “ampla”. “Se for caixa de sapato, não é busca de Deus”. Diz que no tempo em que passou lá, continuou sua história no candomblé. “Fui com todas as minhas coisas do Axé Opô Afonjá. Não foi tirado nada. Não foi mudado nada. Simplesmente fui. Precisava de silêncio”.
No livro, Cléo rememora o movimento comandado por mãe Stella, na década de 1980, para combater o sincretismo religioso de “justaposição” – aquele que associa Santa Bárbara a Iansã, Santo Antônio a Ogum – e conta como a ialorixá retirou símbolos católicos das casas dos santos no terreiro, mas diz que compartilhavam da ideia de que “todas as religiões são sincréticas”. “A mitra que o papa usa, por exemplo, vem de uma antiga tradição religiosa pré-cristã. Mãe Stella e eu, Cléo, a gente sempre teve um olhar muito maior do que essa questão de encerrar verdades dentro de uma caixinha. Ela pensava grande também”.
A advogada é ela mesma ialorixá do Ilê Axé Asiwaju, em Santana do Parnaíba, interior de São Paulo, e acompanha os crescentes casos de intolerância religiosa no país como uma mostra da “lei pendular da história”. “O pêndulo hoje está aqui para o lado direito e amanhã está para o lado esquerdo. Então, essa mediocridade que está acontecendo no mundo, essa intolerância, esse genocídio, tudo isso é reflexo de um grande mal. Por exemplo, você entra na Netflix e vê Lúcifer. Isso é uma maluquice. Esse pessoal pegar e tratar isso como se fosse uma grande piada. Mas numa grande piada, um grande mal está contido. O mundo virou uma grande propaganda do mal”.
Por muitos anos, Cléo organizou o festival internacional Alaindê Xirê, um encontr de alabês que reunia diferentes nações do candomblé, e no livro traz registros sobre o evento. Também estão ali alguns artigos que publicou em A TARDE, e documentos históricos, como a sentença da juíza que determinou a transferência do corpo de mãe Stella, que estava em Nazaré, para que fosse enterrada em Salvador.
A decisão foi comemorada por Cléo, que andava aflita com o imbróglio. Escreve que deu “graças” pela “dignidade preservada por quase um milagre”, “pela misericórdia de Xangô”. E registra, ali, suas últimas palavras para a ialorixá. “Vá em paz. Dispare no compasso da flecha certeira do Doce Caçador!”
Texto TATIANA MENDONÇA tmenconca@grupoatarde.com.br
Foto RAFAEL MARTINS rafael.martins@grupoatarde.com.br
Revista Muito – Jornal A Tarde – Salvador – Domingo, 29/9/2019, pág 12/13.
Conheça o livro: